Friday, April 02, 2010

O gigante corcunda que só comia bolos com creme..




Era uma vez um gigante...um gigante com um palmo de altura..talvez um palmo e meio e mais um bocadinho.Mas a verdade é que ao pé do gigante todas as coisas se sentiam mais pequeninas...
Este gigante não sabia se devia ser um bom ou mau gigante...por isso era um gigante assim..assim.Não tinha muitos amigos,porque sempre que alguém falava com ele e ele não concordava com o que os outros diziam,o gigante trovejava palavras difíceis de pronunciar e é claro que assim era complicado fazer amigos.Porque este gigante,mesmo que não fosse mau metia muito medo...nunca ouvia o que os outros diziam.Tudo o que não saía da sua boca,não era para ser ouvido...
O nosso gigante não tinha amigos porque passava os dias e as noites deitado no sofá a ver o mundo passar lá em baixo..por isso só de vez em quando erguia o pescoço para espreitar se havia por perto algo bom para se comer.O gigante corcunda adorava bolos...mas bolos cheios de creme...com muito..muito creme.Ai como era bom sentir aquele creme docinho a escorregar pela garganta .... pensava o gigante quando acabava de comer o primeiro bolo já a pensar no segundo bolo que pela boca iria engolir.
O gigante não gostava de massa,porque a massa e as carnes tenras ficavam sempre presas nas falhas dos dentes que ao gigante já faltavam.Como este gigante detestava os malvados dos dentistas que lhe tiravam os dentes só porque os apodrecia com tanta doçura acumulada...e o gigante que tinha uns dentes tão bonitos sempre prontos a sorrir.
Os peixes também não faziam parte da sua dieta alimentar..é que os peixes tinham espinhas e o gigante não gostava muito de ter que separar aqueles troncos com os braços abertos ...tinha um medo terrível que alguma espinha lhe ficasse encravada na garganta.A fruta era pouco doce e muita da fruta precisava de ser descascada e dava muito trabalho para este gigante tão preguiçoso.Ai mas os doces com creme,que ele mandava vir da pastelaria do lado,era tão bons.Nada era melhor que um bolinho com creme,aquele creme tão docinho,que não resmunga...que não amarga na boca e nem lhe faz perguntas incómodas. Doces com creme...existirá no mundo algo melhor para se comer? Se existir o gigante não está interessado em conhecer...
O mundo dele vive no aconchego de um sofá...e naquele sofá há pássaros sedentos que fazem ninhos atrás das orelhas do gigante e borboletas que lhe assaltam o estômago de forma fulminante provocando sintomas crónicos de fome.
Mas um dia a pastelaria dos bolos com creme fechou...foi à falência e o gigante coitado ficou ainda mais esfomeado.Tentou comer uma bela perna de frango que por ali passava,mas o frango não se fez rogado e deu uma bela corrida e o pobre do gigante viu aquele prato fugir-lhe das mãos desesperado...Depois viu surgir no horizonte uma bela romã..esticou os braços para a conseguir comer...esticou mais e mais e mais ...mas nem um cm eles se mexeram,tinha os músculos presos de tantas horas deitado naquele sofá tão fofinho e o vento lá lhe levou a bela romã para outro lado.
Pobre gigante que tinha tanta fome e procurava sozinho algo para comer...Lá em baixo havia quem soubesse que o gigante tinha fome,mas tinham medo de trepar até lá cima e depois serem atirados para o chão com a ventania que as gargalhadas do gigante faziam quando deles troçava.Depois tantas vezes que as coisas pequenas subiram até ao seu reino grande para lhe darem o pouco que tinham e o gigante tão pouco se importou,porque se iria importar agora? Pensavam as coisas pequenas quando do pobre gigante se lembravam.E o gigante lá ficou sozinho naquele sofá à espera que o céu lhe mandasse um gigantesco bolo com creme...esperou..esperou mas o bolo com creme nunca mais chegou...

Daniela Pereira in "Contos sem pés nem cabeça mas de coração cheio"
Direitos de Autor Reservados

Thursday, March 25, 2010

O peixe riscadinho e o gato sem riscas...





Era uma vez um peixe riscadinho e um gato preto sem nenhuma risca no pêlo...
O peixe riscadinho vivia num lago e passava os dias a nadar feliz no seu cantinho de águas limpas.Algumas vezes ele gostava de mergulhar bem fundo e ir ter com as pedras ou com as algas que encontrava sempre agarrada a elas.Nas tardes com sol a água aquecia e o peixinho fechava os olhos e flutuava contra o vento.
Nessa casa mas afastado do jardim vivia também um gato..um gato preto de gestos ágeis e pêlo brilhante.O gato sem riscas gostava de ficar até bem tarde na cama..era muito friorento e preferia o quentinho dos cobertores da dona ao ar frio das manhãs.Por vezes também gostava de ficar à janela, a olhar para os amigos vizinhos que o cumprimentavam de longe.
Um dia o peixe riscadinho estava a gozar uma tarde de sol no seu lago,livre de pensamentos quando ergueu os olhos para o céu e viu uma grande mancha negra e uns grandes olhos verdes a olhar fixamente para ele.Assustado deu um enorme pulo e o gato preto num reflexo inesperado esticou a pata na sua direcção mas não agarrou o peixinho. O pobre do peixe ficou com o coração aos saltos depois daquele grande susto e o gato ao vê-lo em tamanha aflição apressou um pedido de desculpas...
- Mil perdões companheira,foi mais forte do que eu..é que ao olhar para si imaginei-a com ares de uma apetitosa sardinha.Mas deixe-me que lhe diga,que a senhora para sardinha é um pouco estranha com essas riscas pretas nas costas.
O peixe foi lentamente recuperando o fôlego e logo deu resposta ao gato preto atrevido...
-Pois fique sabendo que não sou sardinha nenhuma,mas sim um peixe de linhagem asiática e de paladar refinado,digo-lhe eu!Disse o peixe riscadinho ofendido pelo desconhecimento da sua classe...
-Mais uma vez desculpa,mas não digas que tens paladar refinado,porque aviso-te que ainda não meti nada nesta barriguinha hoje e as tuas palavras estão a aumentar-me a fome...disse o gato preto salivando sem se aperceber.
-Bem,senhor gato é melhor mudarmos de assunto realmente...achou melhor dizer o peixinho,já a imaginar-se na boca daquele grande gato preto esfomeado e o gato assim fez.
-Não tinha reparado que moravas aqui neste lago e passo tanto tempo neste jardim...
-É natural,quando a água está mais fria eu prefiro ficar escondido debaixo das pedras onde está mais quentinho,por isso nunca deves ter reparado em mim durante os dias de Inverno..explicou o peixe ao gato curioso.O gato piscou um olho porque um raio de sol tinha entrado demasiado fundo e lhe ofuscado a visão...
-Mas olha que eu no Inverno,também não ando muito cá pelo jardim...primeiro porque está frio..segundo porque odeio molhar as patas quando chove e terceiro não há muito para se ver em dias de tempestade para além de um vento irritante a zumbir-me nas orelhinhas.
O peixe explicou-lhe que também não era adepto dos dias frios e que era normal hibernar no fundo do lago até a água aquecer...
O gato achou estranho e imaginou-se no fundo do lago de patas para o ar sem mexer um músculo...mas quanto mais pensava nisso mais se lembrava que assim iria parecer que estava morto.
-Ai,que estranho essa coisa do hibernar...mas tu não tens fome,nem ficas com dores no corpo por estares tanto tempo parado no fundo da água?E os teus donos nunca pensaram que estavas morto ao ver-te assim?Aquela história do fingir de morto durante o Inverno ultrapassava a sensatez do gato preto,que não conseguia ver vantagem nenhuma em poder ser confundido com um animal moribundo e ser atirado para uma cova cheia de terra ou então no caso do peixinho ser descartado para o esgoto ou para a boca do cão da casa o que seria um cenário ainda pior para se imaginar...

(continua...)

Daniela Pereira
Direitos de autor reservados

Sunday, March 14, 2010

Friday, March 12, 2010

O menino que não gostava de jogar à bola...





Era uma vez um menino que gostava do frio das manhãs na ponta do nariz e do sol das tardes na ponta dos pés descalços. Este menino gostava da natureza e das cores verdes que o mundo pinta nas sacolas que levava para a escola para aprender a ser um pouco maior...mas não de tamanho,porque ele até que nem era assim tão pequenino...mas aprender a ser maior como ser humano.Ele queria aprender a ler todas as histórias que habitavam dentro dos livros que dormiam com ele aos pés da cama.Conhecer os segredos guardados nas folhas...viajar por todas as montanhas..descansar em todos os vales que o homem das palavras inventou só para si.
Quando os meninos da escola iam para o recreio jogar à bola,este menino ia jogar ao "agarra um sonho" e sentava-se num cantinho com um livro a cheirar a novo abraçado ao seu colo.E os outros meninos bem o chamavam..bem lhe diziam que era tão divertido correr num quadrado verde cheio de relva atrás de uma bola redonda todos suados,mas ele nem os ouvia ou então de vez em quando acenava com a cabeça um não e sorria apontando para o livro onde já viajava feliz.
Horas depois,ele pintava no rosto um arco-íris ... inventava animais alados e monstros sem cabeça que mesmo assim sabiam sorrir e comiam pipocas ao lanche.
Depois quando sentia os olhos cansados ele corria até ao pedaço menos alto do céu e trepava até chegar às nuvens que mais pareciam bolas gordas cheias de algodão e pulava..pulava como se tivesse molas nos sapatos...E quando ele olhava para baixo ,lá estavam os meninos aos pontapés na terra com a cabeça cheia de vento a ensaiar pontapés quadrados..como pareciam tontos assim suados a fazer pontaria a uma teia de aranha num ferro pendurada...

Daniela Pereira in "Contos sem pés nem cabeça mas de coração cheio"
Direitos de autor reservados

Thursday, March 11, 2010

A menina do coração de romã e os pássaros tristes...



Era uma vez uma menina que não tinha um coração igual aos corações de todos os meninos que corriam pelas ruas chocando contra os carros logo pela manhã.Esta menina tinha um coração mais doce...Não tinha um coração recheado de guloseimas mas tinha um travo doce...Tinha um coração de romã,vermelhinho e suculento.
Todas as manhãs a menina coração de romã vestia-se de papoila do campo e ia para a janela esticar o olhar para ver o fim do horizonte.Sonhava com barcos-livro que a levassem a ver o mundo numa folha de papel..Quando queria descansar o olhar e os sonhos,ela focava os pássaros que dançavam pertinho do seu olhar.Eram pássaros com a alma triste que voavam em círculos na esperança de encontrar uma nova semente que lhes devolve-se um pedacinho da alegria perdido.
A menina coração de romã tinha um coração tão grande e doce que nunca deixava um pássaro a morrer com fome de ternura.Ela abria a boca devagarinho e deixava os pássaros dentro dela entrar.Então os pássaros desciam com cuidado pela garganta da menina romã fazendo cócegas ao passar para a menina romã nunca deixar de sorrir e enchiam-lhe o peito com suaves melodias.Depois a menina romã abria o coração e os pássaros com a alma triste iam roubando algumas sementes até já não sentirem mais fome.Quando se sentiam com forças para de novo voar agradeciam à menina coração de romã por lhes ter matado a fome e levavam-na consigo a ver o mar...No fim do dia deixavam a menina coração de romã deitada no seu campo de papoilas com o coração ainda mais cheio e partiam felizes porque se sentiam ainda mais doces...

Daniela Pereira in " Contos sem pés nem cabeça mas de coração cheio"
Direitos Reservados

A menina que criava gafanhotos para roubar estrelas ao Céu...






Era uma vez uma menina que passava as tardes a correr no campo atrás dos gafanhotos que saltavam em liberdade.Sempre que conseguia apanhar um que estivesse mais distraído, a menina guardava-o numa caixinha que escondia no bolso do vestido das flores amarelas.
Depois corria mais depressa do que as suas pequenas pernas permitiam e dava pulos de contente.
Quando chegava a casa, beijava os pais e fazia carícias ao gato Farrusco e em pouco tempo já estava em cima da cama no seu quarto com a porta bem fechada para que ninguém pudesse adivinhar o seu segredo.
Dentro da caixinha, amenina criava uma mão cheia de gafanhotos saltimbancos..tudo porque acreditava que um dia ia conseguir que um gafanhoto saltasse tão alto..mas tão alto que chegaria ao Céu.
A menina sabia que no Céu estavam os avós de quem ela tanto sentia saudades. Então pensou e porque sabia que os gafanhotos são capazes de grandes proezas no salto em altura..que se fosse capaz de treinar um gafanhoto a saltar muito alto,ele poderia levar uma carta dela aos avós.
Ela só precisava que o gafanhoto saltasse mais alto que uma mola...daquelas molas que saem disparadas aos pulinhos quando lhe tocamos com um só dedo.
Assim a menina,achava por bem todos os dias alinhar os seus atletas na colcha de lã e treiná-los em rigorosas provas de saltos...ou melhor de saltos e sobressaltos,porque sempre que alguém batia na porta do quarto, os gafanhotos assustavam-se e a menina tremia só de pensar que também os podia perder.
Quando passava o susto os gafanhotos acalmavam e regressavam ao treino dispostos a ajudar a menina das tranças negras que tanto adoravam.
Uns conseguiam saltar tão alto..mas tão alto...que se enchiam com o pó do topo do guarda-fatos. Outros saltavam ainda mais alto do que os primeiros e até batiam com as cabeças no tecto. Pobres gafanhotos que chegavam ao chão meio atordoados,mas com a sensação de dever cumprido quando a menina os enchia de mimos e de guloseimas a cheirar a verde.
Mas o que na verdade os enchia com mais coragem para conseguirem saltar até ao Céu..era o brilho dos olhos da menina das tranças negras sempre que recordava o sorriso dos avós.
Os gafanhotos desejavam em segredo trazer para a menina uma estrela do Céu quando lá chegassem. Uma estrela linda..a mais brilhante de todas para a menina colocar no travesseiro e adormecer todas as noites com aquela luz tão brilhante a velar-lhe os sonhos..Como se o coração dos seus avós pudesse aconchegá-la outra vez todas as noites..

Daniela Pereira in "Contos sem pés nem cabeça mas de coração cheio"
Direitos de Autor Reservado

A menina que semeava palavras rubras em vez de rosas vermelhas




Era uma vez uma menina com o corpo vestido de silêncio e o rosto enfeitado com uma boca pequenina...
Todas as manhãs a menina despia o silêncio do vestido e corria pelos sonhos semeando jardins contando melodias com os dedos...Em cada semente tinha um botão...uma palavra florida ainda por nascer.Corria sozinha..descalça de medos e devaneios com os cabelos pedindo ao vento para soprar com mais força.Tinha nos olhos a terra das lembranças e um pedacinho do céu abrigado num ninho sem mãe para o aconchegar..
Gostava da areia do caminho das águas como amava as pedras na ponte da lua...
Ouvia os pássaros porque só esse silêncio calmo a maravilhava e no fundo da garganta toda a dor para ela se calava...
Cantavam os pássaros e a menina escrevia poemas para levarem até aos pomares e às laranjeiras que os ouviam a murmurar por entre as folhas que no Outono caíam...e a palavra era semente a germinar.
Todas as tardes a menina que semeava palavras rubras sentia o coração a bater mais forte e nos dedos dela cresciam rosas sem pétalas mas perfumadas como as rosas de todos os jardins..eram leves como penas e a tinta que as envolvia era de seiva.
E a menina olhava para a relva verde ...fresca como as uvas das videiras e rebolava de boca aberta voltada para o sol com palavras de jasmim saltando despertas na ponta da língua...e no céu cinzento nasciam estrelas em pleno dia e o sol sorria admirado.
Todas as noites a menina das rosas vermelhas sem espinhos sentava-se à beira rio a ver a lua como fazem todos os que amam alguma coisa e por coisa nenhuma amam o luar...e bailavam em si as paixões e os abraços escritos de alto a baixo com promessas enternecidas escondidas nos laços... Quando o jardim no seu peito adormece ...há rosmaninho a dormir aos seus pés e um ramo de margaridas a vestir-lhe o frio com um doce calor...

Daniela Pereira in "Contos sem pés nem cabeça mas de coração cheio"
Direitos de autor reservados

A gota de água que queria matar a sede ao mundo...



Era uma vez uma gota de água...uma gota de água perfeitinha,orgulhosamente
pura e bem tratada que vivia num reservatório cercada de milhares de outras gotas iguais.
A nossa gota de água tinha um sonho...e não era um sonho pequenino,era um sonho gigantesco.Ela não se lembrava bem da luz do dia,mas sabia por ter ouvido algumas gotas a segredar que tinha nascido de uma nuvem que bailava à beira mar.
Como ela gostava de dar a volta ao mundo numa nuvem assim...percorrer quilómetros e quilómetros abençoada por uma brisa qualquer.
A gota de água sabia que no mundo inteiro existiam manchas de terra que mais pareciam desertos..que muitas crianças morriam antes de serem avós sem uma gota de água para beber.Mas esta gota de água sentia que tinha nascido para fazer a diferença em todas as tristezas do mundo e por isso decidiu que assim que pudesse ia dar a volta ao mundo e espalhar-se por aí em mil e uma gotas iguais a ela e riscaria a palavra sede do dicionário do mundo inteiro.
Então,passava os dias encavalitada em cima de outras gotas..empurrando..empurrando só para conseguir chegar bem lá na frente e pingar da torneira.
E tanto se esforçou, que um dia a sua sorte lá chegou com rosto de menina traquina e a gotinha lá pingou da torneira...apesar de um pouco confusa com tantos solavancos , ela lá foi mergulhada num pequeno fio de água que desaguou num copo de vidro.
A luz do dia era forte e cegava a gota de água mas mesmo assim ela conseguia ver o chão do mundo e as folhas do jornal abandonado na cadeira de baloiço.
Ela fez uma tentativa para ler a folha da frente mas logo desistiu porque a folha só tinha desgraças e ela era uma gota cheia de esperança..ia mudar o mundo.Para quê perder tempo a ler notícias que em breve já seriam passado?
Estava a gotinha de água distraída no meio dos seus pensamentos quando de repente sentiu a boca a encher-se de um gosto estranho...e logo ela percebeu que sabia a sabão.
A menina pegou no copo de água e mexeu com força todo a água que no copo se apertava correndo veloz para o jardim.
Então, a menina sentou-se no banco de pedra ..mergulhou um objecto estranho que a gota de água não conhecia mas que fazia cóceguinhas no seu nariz e a menina soprou..soprou..soprou com tanta força que milhares de bolas de sabão se espalharam em todas as direcções .
E foi com espanto que a nossa gotinha de água se viu envolvida numa enorme bola de sabão que reflectia todas as cores que o céu pintava nas sombras.
Feliz, a gotinha de água pediu ao vento que a embalasse nas suas costas e a levasse para bem longe dali sem nunca a deixar cair porque ela tinha o mundo inteiro para descobrir.
E a gotinha de água mascarada de bolinha de sabão,lá foi alegremente a cantarolar ao vento mundo fora...e tanta coisa a bolinha de sabão viu lá do alto. Passou rentinho aos ramos das árvores mas nunca lhes tocou,apenas acenava de longe e deitava sorrisos às folhas.Flutuou por entre pedras aguçadas ...mãos de crianças..brincou com os bicos dos passarinhos mas ninguém a demoveu do seu sonho de apagar a sede ao mundo..por isso todas as criaturas a ajudavam a subir sempre mais alto soprando-a com carinho para não a magoar e a bolinha de sabão nunca sentiu dor.
Mas um dia a bolinha de sabão olhou para o chão e chorou com o que viu...
A Terra mãe gemia nas chamas e um fogo imenso todas as verdes árvores engolia...A gotinha bem tentou convencer todas as gotas de água enroscadas na bola de sabão a saltarem cá para fora para apagar o incêndio,mas todas lhe diziam que tinham medo de evaporar em nome de nada.Diziam que eram todas demasiado pequenas para afogar um fogo tão grande assim e o vento que atentamente as ouvia soprava a bola de sabão para longe das labaredas deixando a gotinha de água desolada.
Então ela segredava ao vento que sabia que conseguia salvar o mundo,bastava desejá-lo com muita força e o vento lá lhe explicava que não era bem assim...
Depois a bola de sabão viaja a bom vapor e a paisagem depressa mudava …
Foi então que a gotinha de água viu um pedaço de terra virado ao contrário com todas as casas de pernas para o ar e milhares de pessoas a caminhar sedentas no meio de um mundo que mais parecia um deserto. E mais uma vez a gotinha de água,empurrou as suas companheiras de viagem tentando convencê-las a juntarem-se a alguma nuvem de chuva que por elas passasse...
E mais uma vez as gotinhas de água disseram à pequena gota que elas juntas de nada valiam..que não tinham força para erguer as casas da poeira nem para regar a sede de tanta gente.Era melhor fechar apenas os olhos e esquecer a tristeza que viam ali.Mas a gotinha de água não queria fechar os olhos..nem fingir que nada via e deixou-se ficar suspensa com os olhos rasos de água a ver o céu escurecer.
Já nada no mundo era desconhecido para a pequena gotinha de água quando a noite chegou...mas nada no mundo mudou com a força do seus desejos e a gotinha de água chorou com o coração destroçado. Talvez ela não conseguisse mesmo fazer o milagre de matar a sede ao mundo,então se era assim que utilidade tinha ela assim tão pequenina encostada aquelas gotas preguiçosas?Como ela queria ser bem maior para conseguir encher o mundo de água doce.
Foi então que a gotinha reparou que a bolinha de sabão sobrevoava um pequeno jardim com flores secas despejadas num canto.Ela debruçou-se apenas mais um bocadinho e viu uma pequena margarida branca com um ar cansado e triste..já tinha pétalas a perder a cor. Então a gotinha de água gritou lá de cima se ela tinha sede e a margarida soprou com a voz ténue que à muito tempo ali já não chovia e todas as suas irmãs murchavam de sede.
Então a gotinha encheu-se de coragem e deixou sair da sua boca o discurso mais profundo e convicto que o seu coraçãozinho de água conseguiu conceber e pediu a todas as gotas de água que perdessem o medo de sentir os pés no chão porque elas tinham nascido para matar a sede ao mundo e já era tempo de finalmente começar....porque não começar mesmo ali?Naquele pequeno jardim a suplicar por um pouco de água..se não podiam matar a sede a todos os desertos,nem apagar todos os fogos nas florestas..porque não molhar um pouco de terra e ver a vida de novo a florir?
Então a gotinha de água deu um beijo ao vento e pediu-lhe com carinho para a deixar sair daquela bola de sabão e o vento obedeceu levando-a devagarinho até à pequena margarida...e todas as gotas fizeram o mesmo..beijaram o vento na despedida e mergulharam felizes nas raízes da terra que feliz as abraçou.


Daniela Pereira in "Contos sem pés nem cabeça mas de coração cheio"
Direitos de autor reservados